domingo, 22 de dezembro de 2013

Pequenos passos


Dei um passo, me equilibrei, dei mais um passo, me apoiei, dei mais um passo, confesso que até eu duvidei da minha recuperação, por muitas vezes aceitei que nunca mais voltaria a andar, aceitei meu destino, mesmo que ele tivesse sido fruto da minha imprudência.
Pela minha mãe fui obrigada a recomeçar, ela acreditava que eu voltaria a andar, sua esperança nunca desfaleceu, ela me entusiasmava com a certeza da cura, já eu, não tinha ânimo nem para viver, bem que aquele acidente poderia ser fatal, seria menos sofrimento e menos crises econômicas pra todo mundo.
Depois que o namorado me deixou, passei por crises sentimentais e existenciais, era como se eu não valesse nada, minha nova condição de cadeirante só causava dó, pena e muita curiosidade, eu não era digna nem de ter um namorado, ou o namorado, aquele que me amava para sempre até antes do acidente.
Para minha mãe era preciso me readaptar, o importante segundo ela era estar viva e fazer um grande esforço para aceitar a condição de diferente, sem a luta diária de reconquistar os passos, a caminhada e porque não a corrida, fé e força de vontade não faltavam à ela, acho que vez ou outra ela injetava esse entusiasmo em mim.
Eu me senti fracassada, a vida de todos a minha volta se transformou, era muito caro o tratamento, esperar pelo SUS demora meses, anos, tínhamos que viajar para centros de referência, tínhamos que experimentar os novos experimentos desenvolvidos pela indústria farmacêutica, algo em torno de “uma economia de toda a vida”, não me cansei em ser cobaia de novos testes.
Meus irmãos, coitados! Tiveram que aceitar a dura realidade de me ter como centro das atenções e do agora pouco dinheiro girando em torno de mim, para eles não foi fardo, nenhum deles reclamou, amar tem disso, precisamos nos adaptar e a casa precisou de reformas para que eu pudesse me locomover mais facilmente.
Mais dinheiro com a casa planejada para uma recém-deficiente, eu estava arrasada, mas experimentava a felicidade, estava realizada em meio ao arraso, como pode isso?
Diante de todo o contexto eu precisava retribuir de alguma forma, precisava ser carinhosa, obediente, esforçada, precisava parar de reclamar, tudo já era tão pesado, então eu tinha que tornar tudo leve e esse era o meu papel.
Comecei a fazer tudo que eu podia para estar bem, quando estava cansada de lutar, surgiam novas forças do alto, o trauma não me destruiu, nunca pensei em suicídio, o máximo foi: poderia ter morrido e poupado todo mundo de tantos estresses, porém, depois de anos e com a cura, abandonei aos poucos a cadeira de roda, peguei as muletas, daqui a pouco me liberto delas e assim obtive a resposta do “por que não morri?”
Com a deficiência pude desacelerar, contemplar a natureza, a música, dar valor ao “sem valor”, também aprendi que eu lutava não só por mim, mas pelo mundo em minha volta, não era justo eu me acomodar com tanta gente sonhando junto comigo.
Eu amadureci uns quinhentos anos, estou a Senhorita Matusalém, aprendi o verdadeiro amor, o amor dos sacrifícios por quem se ama, o amor do não descartável, o amor de todos os momentos.
Reagi de forma adequada ao tratamento, mas quantos não reagem, quantos perdem a força para viver, quantos se deixam influenciar por intenções egoístas de quem estar ao redor, tenho certeza que se não tivesse gente apostando em mim, ficaria na cadeira de rodas para sempre, eu não mudei por necessidade, eu mudei porque eu tinha as forças de quem estava ao meu lado.
Foi difícil desapegar do passeio no shopping, da corrida matinal, da caminhada intercalada, da liberdade de ir e vir, foi duro existir de forma diferente, foi duro deixar o tempo passar e eu perdendo as oportunidades de viver coisas que pessoas comuns vivem, meus problemas não se dissolveram, mas eu resolvi desprezá-los, se não dava para ser feliz com o que eu não podia fazer, eu podia ser feliz com tudo que eu podia fazer, eram dias e dias de oportunidades para contemplar a natureza, a música, para conversar, para respeitar as pessoas, para criar relacionamentos com base na essência de cada um.
Jamais me senti inferior, mesmo que no mundo desconhecido de pessoas desconhecidas a atmosfera ficasse cheia de dó e pena, nunca senti que sou diferente, as circunstâncias eram diferentes, a vida era limitada, mas eu, eu continuava a mesmíssima pessoa, com todos os pensamentos, todo o amor, toda característica de mim.
Causei impacto quando me recuperei, alguns, assim como eu, duvidaram, os ausentes se aproximaram, parecia que eu estava acorrentada e tinha me tornado livre, mas a verdade é que eu estava mais livre presa naquela cadeira de rodas, estava rodeada de pessoas que me aceitam em qualquer condição, com qualquer humor, lutando ou desistindo.
A sociedade atual nos julga, nos molda, nos condena, lembra que eu tive culpa pelo meu acidente, lembra que eu bebi antes de dirigir, lembra que eu coloquei em risco a minha vida e dos demais, ainda bem que eu mesma paguei o preço, jamais admitiria que alguém sofresse pelos meus erros, isso sim é ter uma vida infeliz.
Se a vida me desse uma nova chance, faria sim diferente, mas não posso dizer que não valeu o aprendizado, expresso sim, que sinto muito, sinto pela minha mãe, meu pai, meus irmão que renunciaram férias em prol do meu tratamento, sinto muito pelo medo que senti de não acreditar nos médicos, nos fisioterapeutas, nas psicólogas, nos fitoterápicos, acabei confiando na marra, precisava passar o tempo, lutar e confiar, se lutavam por mim, era porque eu tinha chance.
Esqueci muita gente pelo caminho, pessoas que sob a desculpa de falta de tempo, nunca vieram me ver e que após a recuperação queriam a melhor parte de mim, fui corajosa no mesmo grau de que fui imprudente, viciei em leitura, conversas com vizinhos e pequenos deleites de contemplar a lua.
Perdi as contas de quantas vezes deixei de valorizar as pequenas coisas, quantas vezes estava escravizada pelo preconceito, quantas vezes fui limitadora no amar, quantas vezes censurei e subestimei pessoas. Quando sofremos as picuinhas perdem sentido, a boa vontade toma o lugar de qualquer mal-estar, outra vez me senti irreconhecível, quando a minha atitude usual seria explodir.
Não fiquei exausta com minha recuperação, apesar de todos os contrapontos dos últimos tempos, aprendi a amar de verdade e superei obstáculos. Fui e sou feliz em todo o percurso.
- Arcise Câmara
- Crédito de Imagem: http://vidaintegralporadrianapessoa.com










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