Amor, Liberdade, Pseudo- Amor e Manipulação
A vida anda mesmo surpreendente. Tanto, mas tanto, que outro dia tomei um
tapa na cara, desferido por um moleque de 8 anos de idade. Eu, adulto,
supostamente racional e forte, tomando surra de criança!!! E pior: o danado do
moleque era meu filho!!! Explico-me: estava arrumando a
bagagem pra partir a NYC, onde passo uma semana a cada mês clinicando. Coisas
de trabalho, necessidades que o suposto sucesso profissional impõe à gente.
Bom... entra meu filhote de 8 anos no quarto e me pede pra trazer dos EUA um
brinquedo que ele já vem desejando há um tempinho. Como nada é de graça, havia
feito com ele um trato: ganharia o brinquedo mês que vem, em seu aniversário.
Diante da insistência do garoto (vou proteger deliberadamente o nome do meu
filho neste artigo), lembrei-o de nosso acordo: "Filhinho, lembra do
trato? Mês que vem é seu aniversário, e você ganhará o que pediu". Pois
não é que o sujeitinho, do alto de seus 8 anos de idade, me solta, em alto e
bom som "Puxa, papai... eu pensei que você me amasse! Se me amasse de
verdade, trazia o brinquedo dessa vez pra eu não ter de esperar!!" BUM!!!
TAPA NA MINHA CARA!! Tapa feio e covarde na minha cara. Porque ele havia sido
"espertinho" e usado o argumento do amor pra eu trazer o brinquedo??
NÃO!! Em absoluto não!! Tapa porque, mesmo que sem maldade, o meu
queridíssimo filho revelou, já numa idade tão tenra, uma das características
mais odiosas de que nós, seres humanos, somos quase todos imbuídos: a
capacidade de apelar para a manipulação sob um argumento horroroso de amor.
Manipular é jogar com o outro. É querer fazer com que ele se sinta culpado por
não atender ao nosso anseio, à nossa vontade. É procurar destituir o próximo de
sua vontade própria, impor a ele a nossa, e ainda sairmos de bacanas na
história... É, enfim, uma das formas mais sutis, inteligentes e infames de
egoísmo e de violência psicológica.
O pior de tudo é que a manipulação vem quase sempre num manto reluzente
de pseudo-amor, de "eu faço isso porque gosto de você", de
"nossa, eu sou tão legal com você, por que estás me tratando assim?".
Sei que parece exagero, mas NÃO É. Tentar fazer com que o nosso próximo
faça o que A GENTE quer, mesmo que não seja A VONTADE DELE, e ainda buscar convencê-lo
de que TUDO ISSO ESTÁ ENVOLTO NUMA ATMOSFERA DE AMOR é algo vil, algo baixo e
que vai contra todo conceito de amor verdadeiro que a psicologia conhece. Sabem
por quê? Porque amor MESMO, amor DE VERDADE, é sentimento que liberta. Amor não
é feito pra fazer o outro se sentir culpado. Pra fazer o outro se sentir mal
porque não está cumprindo com a NOSSA vontade, ou porque o outro não partilha
da NOSSA opinião. Amor é sinônimo de liberdade. Manipulação usando nome de amor
é sinônimo de violência psicológica sutil e calculada.
Estou exagerando? Acha que eu sou pessimista e infeliz? Muito pelo
contrário. Pense na sua vida diária!!! Vou dar dois exemplos bobos aqui e quero
ver se você nunca passou - seja como vítima, seja como carrasco - por pelo
menos um deles...
1) Você está de dieta. Chega à casa de sua mãe, ou à casa de amigos. A
comida naquele dia é incrivelmente calórica. Você, educadamente - mas buscando
o que lhe parece mais sensato - recusa polidamente a comida porque quer ficar
firme na dieta. Daí ouve aquela coisa liiiiiinda: "Ah, não acredito!!
Fizemos a comida com tanto amor pra você! Que desfeita....".
BUM: Manipulação!! Pura e simples, disfarçada de carinho. Se a pessoa
gosta tanto de você a ponto de querer agradá-lo gastronomicamente, irá também
entender que a sua opção de não comer tal prato é algo seu, algo saudável.
Se a pessoa GOSTA de você, ela entende. Se não gosta,
apela pra manipulação.
Resultado: ou você não come e vira o babaca sem
consideração do ano; ou come, satisfaz o egoísmo do ego de quem lhe quer
entuchar às calorias, e depois fica fulo da vida consigo mesmo. E irá alimentar
um cancerzinho que pode aparecer a qualquer hora.
2) Você está em casa. É sexta à noite, e você só quer descansar, relaxar
e desfrutar a deliciosa companhia de si mesmo, vendo um
bom DVD. O telefone toca, e é aquele amigo/amiga que não sabe ouvir
"NÃO". Ele quer porque quer que você vá à festa do ano com a turma
(já repararam como a "festa do ano" acontece umas mil vezes por
ano?). Você diz que não está a fim.
BUM: Manipulação!! "Puxa, você não quer ficar com os amigos? Só
estamos insistindo para você ir porque amamos você e o queremos ao nosso
lado". Tsc tsc tsc... MENTIRA! As pessoas podem até gostar de você, mas, acreditem,
elas gostam muuuuito mais delas mesmas. E se não conseguem respeitar o fato de
que seu desejo, naquele momento, é estar em outro programa... meu (minha)
caro(cara), pode desconfiar: o tal AMOR que o suposto amigo/namorado,parente
sente é do tipo tóxico, egoísta, manipulador . Afinal, voltamos à premissa
inicial: amor liberta e respeita. Egoísmo manipula e acorrenta. O amor do tal
amigo é por ele mesmo, e não por você. Se ele ama VOCÊ, ele entende seu ponto
de vista. E aí? Algo soou estranhamente, incomodamente familiar? Provavelmente
sim, né? A lista é infinita, e eu não quero que este artigo vire um livro (bom,
já estou escrevendo um sobre o assunto). Fato é que, em linhas gerais, eu vou
dar (deveria vender, mas vou dar) alguns conselhos de sobrevivência: - NUNCA,
SOB NENHUM PRETEXTO, torre a paciência de um suposto ser amado pra ele fazer
algo que não deseja fazer em determinado momento.
Pior ainda, NUNCA MESMO use
coisas do tipo "poxa, mas e a nossa amizade?" ou "meu filho, mas
é um pedido de seu pai que o criou com tanto amor" ou "só estou
insistindo porque gosto de você e o quero por perto" pra fazer com que o
próximo enfraqueça em sua vontade própria e siga a SUA vontade egoísta. Seja
pelo menos honesto o suficiente pra dizer "ok, estou te pressionando
porque essa é uma vontade MINHA, e eu gostaria que fosse sua vontade
também". Mas ainda assim, esteja preparando pra ouvir NÃO e aceitar que as
pessoas têm opiniões, "timings" e vontades diversas, e que isso não
faz de ninguém um monstro sem coração. Aceitar a respeitar a divergência de
vontades e pontos de vista é o primeiro passo pra construção de um
relacionamento baseado em amor e respeito reais , e não em
submissão/manipulação pueris. - Se você está do outro lado da situação - ou
seja, se é a "presa" da tentativa de manipulação, tente NUNCA
fraquejar. Acredite, eu sei o quanto é difícil. Meu filho de 8 anos me fez ver
isto da maneira mais crua e cruel há alguns dias. Mas tente, na medida de suas
forças, bater o pé! Não violente a sua vontade, seu desejo, sua convicção para
simplesmente satisfazer a vontade do outro, vontade esta disfarçada de amor e
cuidado. Seja gentil e direto, com todo o carinho: "Meu(inha)
amigo(a)/mãe/irmão, eu amo você. E eu sei que isso é o que VOCÊ queria nesse
momento. Mas EU não quero/não posso/não devo. Então, por favor, pelo respeito
ao suposto amor/amizade/laço familiar que nos une, pare de me fazer sentir mal
porque eu não estou atendendo à SUA vontade. E tente me respeitar um pouquinho mais."
É sempre muito mais fácil ser o cara "agradável".
O que nunca diz "não", o que faz aquilo que a mamãe, o amigo,
os colegas, o
chefe... aquilo que TODO MUNDO QUER, menos ele mesmo .
Mas submeter-se a uma existência calcada em manipulação é perder a força da
nossa própria personalidade.
Sobre o meu filhote? Eu disse a ele "Querido,
papai o ama muito. Mas trato é trato. Mês que vem você ganha seu brinquedo, e
isso não significa, de jeito nenhum, que o papai não o ame. Aprenda a lidar com
isso, porque a vida nunca vai ser exatamente da maneira como você quer. Mas,
ainda assim, pode ser muito bela e cheia de coisas boas" Essa frase que eu
disse ao meu moleque de oito anos parece nunca ter sido ouvida por grande parte
da população do mundo. Uma pena, de verdade...
Não estou aqui sugerindo uma adoção do princípio do DANE-SE! Não é que,
de repente, meu querido leitor vai começar a dizer DANE-SE pra tudo e todos, e
se tornar uma pessoa irrazoável, que só segue cegamente a vontade própria e não
consegue contornar situações. Nenhum extremo é bom: nem o do cordeiro que tudo
aceita, nem o do lobo agressivo que só faz o que lhe dá na telha.
Mas uma coisa é certa: acenda seu farol da desconfiança quando alguém
insistir demais para que você faça algo que não deseja/não pode, em nome de um
suposto amor. Amor e manipulação andam numa linha tênue, fininha... e é preciso
estar atento para distingui-los. Falar NÃO é difícil. Mas muito mais dolorido é
dizer "SIM", quando você justamente queria ter falado o contrário...
Fonte: Contardo Calligaris
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